O ETERNO MARIDO - prisioneiro de si mesmo

 

A primeira vez que ouvi falar de Fiódor Dostoiévski - um dos maiores autores russos de todos os tempos -, foi num diálogo entre o padre Fábio de Melo e o historiador Leandro Karnal, que deu origem à obra CRER OU NÃO CRER (clique aqui para ver). Ambos citaram o autor diversas vezes, com muito respeito e admiração, não só pela grandeza de seus romances, recheados de experiências humanas, como pelos questionamentos morais levantados, vividos por personagens emblemáticos, que nos remetem à vida real.

Entretanto, nunca havia lido uma obra sua... até este mês, quando fui presenteada com meu primeiro livro de Fiódor Dostoiévski, O ETERNO MARIDO. Nem sei por onde começar, tampouco se tenho palavras para descrever minha visão sobre o tema e conteúdo, mas vou tentar expressar um pouco do que li, aprendi e me motivou a comentar sobre esta obra.

A trama parece uma novela repleta de dramas e suspense, envolvendo dois amigos que se reencontram após uma década. O primeiro deles é Vieltchâninov (na minha visão, o protagonista), um homem elegante, de boa aparência, com ar aristocrático e frequentador da sociedade russa do século XIX. A aproximação dos seus quarenta anos, juntamente com sua condição física e financeira abaladas, levam-o a uma profunda crise existencial, deixando-o descontente com a vida, tornando-se uma pessoa amarga, cínica e arrogante. O outro personagem, Páviel Pávlovitch, a quem o autor chama de O eterno marido, é seu oposto. Com um ar cansado de alguém aparentemente mais velho, sem beleza e porte físico admiráveis, carrega o fardo de um viúvo traído e um sentimento desprezível por si mesmo. É a prova viva do homem diminuto, de baixa autoestima, dotado de uma boa condição financeira que lhe possibilita estar onde quiser, com quem quiser. Entretanto, os dois parecem ter algo em comum: as mulheres… Entre encontros e desencontros, brigas e discussões, o passado mal resolvido parece assombrar a vida dos dois, de tal modo que não irão cessar até resolver suas pendências. O encontro (ou reencontro) acontece por acaso, ou não, e finalmente os dois têm a oportunidade de colocar tudo em “pratos limpos”.

A história baseia-se num drama do passado que resultou na traição da esposa de Páviel com o amigo Vieltchâninov. Dessa relação tumultuada, e aparentemente esquecida por Vieltchâninov, nascera Liza, cuja paternidade lhe fora negada pela própria amante. Até agora. Com o passar dos tempos (e capítulos), os fatos vão sendo revelados em detalhes, cheios de suspense e emoção, mostrando que ambos tiveram sua parcela de culpa pelos atos cometidos, mas que, apesar de um deles ter superado (o amante), o esposo permaneceu inerte por muitos anos, chegando ao seu limite quando perdeu a esposa para o câncer. Talvez, apenas por isso, tenha tomado tal decisão, já que sempre soube do caso, mas não tinha coragem de confrontar o amigo, a quem tinha grande consideração…

Para mim, ambos são diferentes e parecidos, ao mesmo tempo. Parece existir um certo ciúme e complexo de inferioridade por parte do esposo traído, ao mesmo tempo em que o amante se vê instigado a perseguir todas as pretendentes do amigo, sempre que lhe são apresentadas as candidatas, como uma disputa inconsciente. Seria inveja ou ego ferido?! Não sei dizer ao certo, mas o que os aproxima é justamente a repetição dos erros, impedindo-os de avançar em direções opostas. É assim que vejo Vieltchâninov e Páviel Pávlovitch.

Mas existe também muitas diferenças bem visíveis entre eles. Um é corajoso. O outro, covarde. Um luta diariamente contra seus fantasmas. O outro, esconde-se por trás da bebida. Um admite que errou, tem crises de consciência, mas não deixa que os erros do passado o impeçam de criar um novo futuro. O outro prefere seguir eternamente fraco e inerte, com pena de si mesmo, repetindo os mesmos erros, aceitando o que a vida lhe colocou como sentença, sem reagir, culpando sempre o outro (amante), ou os outros, pela sua miséria. Um homem incapaz e infeliz.

“A pessoa bebe a própria tristeza e como que se embriaga com ela.” Páviel Pávlovitch

Entretanto, apesar de não admirar este “rótulo” de homem traído (“possuidor de chifres”, como irão dizer) - que vive à sombra da esposa, aceitando as consequências de seus atos (ou falta deles), sem contestar, como um brinquedo -, também senti certa compaixão por ele, justamente pela sua fraqueza humana. Vi uma alma atormentada pelo medo e tristeza de não conseguir ser mais do que ele é. De alguém que, para viver, precisa estar morto, à sombra do outro. No caso, da mulher. Não só da primeira, mas da segunda e da terceira, que não o impediram de ser humilhado, repetindo os erros do passado. Por que seria? Se agora ele tinha a oportunidade de ajustar as contas e tornar-se um homem admirado por uma mulher, ele faz exatamente o contrário, ou seja, o de sempre. Acovarda-se e continua mantendo a postura de antes. Procura fantasmas onde não tem (ou tem), talvez por não reconhecer quem ele é e não querer sair de onde está, continuando a viver como um reflexo da esposa, uma espécie de ornamento, um lenço… um simples e eterno marido. E para manter-se neste papel, precisa também manter contato com o amigo amante, a quem busca aprovação, como suporte ou muleta para sua vida miserável. Sem entender o porquê, ele segue repetindo os mesmos erros com o amigo “traidor”, que aos trancos e barrancos, também vai se desviando dele e de possíveis escorregos a cada encontro com o esposo. Em suma, é isso. Duas almas atormentadas e aprisionadas pelo mesmo passado. Um alimenta-se do outro, sem perceber que a amizade de um representa a fraqueza do outro.

Ele fica procurando… amantes embaixo da cama… quando não é necessário… (Mítienka, segunda esposa de Páviel Pávlovitch)

“…A gente às vezes tem realmente vontade de sumir pela terra adentro; noutros momentos, parece, seríamos capazes de abraçar alguém sem cerimônia, (…) unicamente para chorar em sua companhia…” Páviel Pávlovitch

A natureza humana é cheia de armadilhas e, se não tivermos coragem para adentrar nossa mente, curar nossas feridas, achar o gatilho que causou mal estar, não seremos capazes de construir algo diferente nem relevante para nós. A não ser carregar um rótulo, como o eterno marido (ou eterna esposa), presos e acorrentados aos traumas do passado. Incapazes de sermos mais e melhores porque não nos achamos capazes. Ou por acomodação, por achar que tal posição é suficiente para se viver. Ou não viver. Mediocridade. Quem vai saber…

Trechos da canção em forma de declaração, de Vieltchâninov para a pretendente do amigo Páviel 

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